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18 . 01 . 2019

Licões Metabólicas dos nossos Antepassados

A nossa sociedade vive tempos de desenvolvimento científico e tecnológico sem paralelo na história da Humanidade. Contudo, deparamo-nos com uma elevada prevalência de doenças crónicas que não atingiam os nossos antepassados. Será que, enquanto sociedade, estamos a fazer algo errado?

Neste âmbito, foi publicado um interessante estudo que analisou as principais diferenças a nível da dieta, estilo de vida e indicadores de saúde metabólica entre grupos de caçadores-colectores e a população do mundo industrializado.

Felizmente, ainda existem algumas sociedades ancestrais espalhadas pelo globo que se alimentam, movem e relacionam, de forma idêntica ou muito semelhante aos nossos antepassados que habitavam o planeta há 10.000 anos atrás. São exemplo dessas pequenas populações:

  • o povo Hadza, que habita o norte da Tanzânia e se alimenta exclusivamente à base de produtos de caça, tubérculos, frutos e mel.
  • os Tsimané da Amazónia boliviana, que além da caça e pesca também praticam agricultura de subsistência, cultivando mandioca e plátanos.

O que estas, e outras, populações ancestrais têm em comum é uma incidência quase nula de doenças cardiovasculares, diabetes mellitus e obesidade, ao invés do que acontece no mundo industrializado.

Qual é a esperança de vida nestas populações?

Muitas vezes estes dados antropológicos são descartados sob a premissa de que estes indivíduos não desenvolvem as doenças da civilização moderna porque, simplesmente, não chegam a idades avançadas. É verdade que a esperança média de vida é reduzida nestas populações, estando na ordem dos 30-40 anos, e a taxa de mortalidade infantil é muito elevada, contudo alguns destes indivíduos vivem até aos 70-80 anos. A principal causa de morte é a doença aguda (tipicamente infecciosa e gastrointestinal), seguida de trauma.

Fig. 1 – Os Hadza são um povo indígena da Tanzânia com cerca de 1000 indivíduos.

 

Qual é a percentagem de obesidade?

A obesidade é um fenómeno muito raro nestes povos. Nos Hadza, por exemplo, o IMC (índice de massa corporal) médio é de 20 para ambos os sexos e apenas 2% dos indivíduos caem na categoria do excesso de peso (IMC entre 25 e 30). Os Tsimané têm um IMC médio mais elevado (24.7 para as mulheres e 23.8 para os homens) mas percentagens de gordura corporal reduzida, o que sugere que o IMC pode não ser uma medida fiável de adiposidade corporal nestas populações.

Existe doença cardiovascular nestas populações?

A doença cardiovascular parece ser uma causa de morte negligenciável nestas sociedades de caçadores-colectores, até nos indivíduos com mais de 60 anos. A hipertensão arterial que afecta mais de 60% da população norte-americana acima dos 60 anos, também é um fenómeno incomum nestes povos.
Um estudo de 2017 procurou identificar a presença de doença coronária aterosclerótica através da obtenção de scores de cálcio e o resultado foi a taxa mais baixa registada já registada em qualquer população até à data.
O perfil lipídico e a glicémia dos caçadores colectores também são bastante mais favoráveis.

Fig. 2 – Perfil lipídico e glicémico de duas populações de caçadores colectores em comparação com a população norte-americana.

 

Qual são os seus níveis de actividade física e dispêndio de energia?

Como esperado, estas populações são muito mais activas fisicamente, tendo sido apurada uma média de 9.5 km diários de caminhada nas mulheres e 14.1 km nos homens. Adicionalmente, registam-se picos variáveis de actividade mais vigorosa, de acordo com as necessidades. Apesar do aumento de actividade física, a média de horas de sono não difere da actual (5.9 a 7.1 horas por noite).

Surpreendentemente, apesar da actividade física dos caçadores-colectores ser amplamente superior, o dispêndio energético total por dia é semelhante ao das populações ocidentais industrializadas. Ou seja, o corpo humano parece ter um mecanismo de eficiência energética através do qual o consumo de energia permanece relativamente estável apesar de a actividade física variar.

Esta observação permite-nos inferir que os caçadores-colectores têm menor taxa de obesidade, não porque gastam mais energia, mas sim porque ingerem menos calorias.

O que caracteriza a dieta destes povos?

Os alimentos ingeridos pelas diversas populações de caçadores-colectores, variam de forma significativa de acordo com que a Natureza lhes oferece. Por exemplo, quanto maior a latitude, maior o consumo de proteína animal, provavelmente devido à maior escassez de matéria vegetal. Em paralelo, o rácio de macronutrientes que compõe a dieta também varia consideravelmente entre as diferentes sociedades ancestrais. Contudo, um factor interessante de registar tem a ver com o consumo de hidrato de carbono, incluindo açúcares sob a forma de mel. De facto, as dietas dos Tsimané e dos Hadza são mais ricas em hidratos de carbono do que a média dos povos industrializados. Esta observação contraria a teoria de vilificação dos hidratos de carbono, que se advoga em alguns círculos actualmente.

Existem várias semelhanças entre estas dietas “ancestrais”, que podemos resumir nos seguintes tópicos:

  • Incluem carne e/ou peixe e matéria vegetal.
  • Preferência por alimentos cozinhados.
  • Ricas em micronutrientes (minerais, vitaminas, antioxidantes, etc.).
  • Baixo índice glicémico (capacidade de um determinado alimento elevar a glicose sanguínea, quando ingerido).
  • Consumo abundante de fibra.

Fig. 3 – Composição da dieta (percentagem de calorias diárias para cada macronutriente) de duas populações de caçadores colectores em comparação com a população norte-americana.

 

A antropologia evolutiva é a disciplina que estuda a forma como a fisiologia e comportamento humano se foi adaptando à Natureza ao longo da história. É fascinante como podemos ter tanto a aprender com civilizações ancestrais que aparentam estar completamente “ultrapassadas”. A medicina tem evoluído de forma extraordinária, permitindo o controlo e erradicação de algumas doenças infecciosas, o tratamento de inúmeras outras patologias, conduzindo ao aumento da esperança média de vida. Mas, não temos feito tudo bem e o estudo dos nossos “antepassados” pode dar-nos algumas pistas sobre quais os ajustes a (re)implementar.

 

Referências:

Pontzer H, Wood BM, Raichlen DA. Hunter-gatherers as models in public health. Obesity Reviews 2018; 19 (December): 24-35.

KaplanH, Thompson RC, Trumble BC et al. Coronary atherosclerosis in indigenous South American Tsimane: a cross-sectional cohort study. Lancet 2017; 389: 1730–1739.

02 Comments

Muito interessante!

Em conta também a quantidade de alimentos processados e a não distribuição da população a nível mundial. Pensar local e auto sustentabilidade com a possibilidade de desenvolvimento recursos específicos em determinada zona é uma ou mais valias, bem como a diminuição rigorosa por leis da pegada ecológica, ajudando no equilíbrio dos humanos em si como na Natureza em todos.

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